quinta-feira, 31 de outubro de 2013

NÃO HÁ AMORES PERFEITOS (PEDAÇO)





Bocelli enchia a casa do seu canto mágico. Maria deixou-se levar pelas palavras que pareciam nascer do ar, alheando-se de tudo o que a cercava. “Com té partiró” – repetia o cantor e ela perguntava-se se alguma vez tinha havido alguém com quem quisera fazer essa viagem de vida, assim tão desprotegida e tão confiante como adivinhava no poema que fazia vibrar todo o seu ser, a casa, os móveis, pondo em risco anos de boa vizinhança.
Artur habituara-se desde o ventre às melodias que a mãe cantava a par do cantor, muitas vezes sobrepondo-se a ele, outras limitando-se a ouvi-lo alto, sempre alto, como se quisesse calar outras vozes que teimavam em assaltá-la, assustando-a. Cantava para espantar os medos. Sempre assim fora, seguindo os conselhos de sua avó: “Quem canta não espanta só os seus males. Espanta os fantasmas, os medos!”
E ela tinha tanto medo, tanto!! Às vezes dava por si enroscada aos pés da cama do filho, olhando-o, embalando-se em melodias infantis, não para ele, mas para si mesma, receando o momento em que a magia se quebraria para sempre. Reaprendera a rezar quando Artur nascera. “Senhor que eu viva o tempo suficiente para ver os filhos do meu filho” era a oração que lhe saia quando o olhava assim, plácido, adormecido, indefeso e feliz por saber que ela estava ali.
Mas até quando? Até quando?
Um dia Lena tinha confessado, no meio das lágrimas pós divórcio, que tinha medo duma série de coisas, entre elas de morrer e as filhas encontrarem-na sem vida, desesperadas no seu abandono precoce. Maria rira de todos os receios: de que as garotas gostassem mais da mulher do pai do que dela, que deixassem de a respeitar, que tivessem pena da mãe.... mas daquela imagem não fora capaz de rir nem comentar! Limitara-se a recolhê-la dentro de si num silêncio que a amiga não notou mas que lhe abriu um vazio, um frio no peito!! “Que eu viva Senhor, por ele, apenas por ele. Deixa-me vê-lo fazer-se homem. Depois... bem depois é a Tua vontade que tem que ser feita!”
Há muito que sabia que a sua, não seria uma vida longa. Soubera-o nos primeiros meses de gravidez.
“É um risco enorme, minha senhora! Ainda vai a tempo. Nestas circunstâncias não há médico nenhum que lhe recuse a interrupção da gravidez” - afirmara o médico afagando-lhe a mão.
Sentira como se tivesse tocado alguma coisa uma viscosa, infecta e retirou-a bruscamente. Sabia que o médico não falara por mal. Pelo contrário: dissera-o com um certo peso e a amargura na voz, talvez estudada e não sentida. Mas nem essa piedade a tocara. Odiou-o, como se fosse ele o responsável por essa massa informe que lhe invadia o cérebro inexoravelmente e que em qualquer altura a poderia matar. A ela talvez, mas ao seu filho não!! Aquela coisa que a minava, que lhe comia os dias de vida a que tinha direito, não contava com a sua força de vontade, o seu desejo de ser mãe, de ver esse pequeno ser, que seria um duplo presente de Deus. Ela havia de sobreviver, de criar o Artur dos seus sonhos, o homem bom que, a seu jeito, mudaria o mundo, mesmo que fosse apenas o restrito mundo que era o seu.
E vencera!
Não estava ele ali belo e sereno a provar que há poderes mais fortes do que o mal, a doença, o ódio ou a repulsa? Fora o amor que a mantivera viva. O amor a esse filho que  era dela, só dela.
Do pai de Artur, não lhe restavam recordações. Apenas cheiros e sensações que a agoniavam, mais do que todos os enjoos matinais. A lembrança era suja, repelente, mas o resultado era tão puro, que havia vezes que quase lhe perdoava a humilhação, a dor, a raiva, o ódio. Tal como na história, este seu Artur era também, filho do engano, do estupro, da vergonha. Mas tal como a lenda, revelara-se puro, inocente, sua alegria, seu orgulho, sua razão de viver. Mas até quando? Até quando? “Com té Partiró!” não haveria ninguém para a acompanhar nessa viagem, tal como até ter o seu filho, não houvera ninguém para partilhar esta outra, que se dizia ser apenas passagem para uma melhor.
Ah avó, avó! Como tinhas razão nessas máximas que muitos achavam chavões, lapalissadas: “Nascemos sós e morremos sós. É a lei da vida”. Mas avó, quando se nasce têm-se dois braços abertos à espera. Quando se morre o vazio é o único que nos acompanha! O vazio e o medo!
Maria lamentava não ter a fé de sua sábia avó, tão serena, tão confiante!
Voltara a frequentar a igreja às escondidas. Não se atrevia a que comentassem essa sua súbita necessidade de conforto, de segurança, que apenas um Ser Superior lhe podia dar. Porque tudo se resumia a isso, não era? Ao medo da morte. Fora por isso que o Homem inventara um Deus. Ou não?
Levantou-se de mansinho com um cansaço que não vinha do corpo mas da alma, e desligou Bocelli, cansado decerto de cantar vez e outra a mesma melodia. Quase lhe pareceu ouvir um suspiro contido da vizinha de baixo. Sorriu! Tinha que se deixar destas aventuras. Afinal a pobre senhora, uma velhinha amorosa sempre pronta a ajudar, não tinha culpa dos seus medos, da sua solidão, da sua morte anunciada. Que horas eram, afinal? Quase meia-noite! Que desrespeito! Amanhã levar-lhe-ia uma dúzia de gerberas. Sabia que a vizinha adorava as cores fortes das flores. Amanhã! Se o amanhã ainda chegasse.
Espreitou o quarto do seu filho, onde a luz de presença lançava sombras que aquietavam os terrores nocturnos que de tempos a tempos surgiam e o levavam a entrar dum salto na sua cama, enroscando-se no seu corpo e escondendo a carita no seu pescoço. “Shiu, já passou! Foi apenas um sonho mau! Já passou” e afagava-lhe a cabeça ouvindo-lhe a respiração acalmar-se lentamente, até o sono o vencer de novo, apaziguador e sem sobressaltos.
Rodeou o seu próprio corpo que tremia, engoliu as lágrimas e tentou tranquilizar-se “Vai passar, vai passar. Um dia tudo não será senão um sonho mau. Vai passar!” Mas o sono chegou tardio e repleto de sonhos. A si mesma não conseguia embalar-se.

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