Bocelli
enchia a casa do seu canto mágico. Maria deixou-se levar pelas palavras que
pareciam nascer do ar, alheando-se de tudo o que a cercava. “Com té partiró” –
repetia o cantor e ela perguntava-se se alguma vez tinha havido alguém com quem
quisera fazer essa viagem de vida, assim tão desprotegida e tão confiante como
adivinhava no poema que fazia vibrar todo o seu ser, a casa, os móveis, pondo
em risco anos de boa vizinhança.
Artur
habituara-se desde o ventre às melodias que a mãe cantava a par do cantor,
muitas vezes sobrepondo-se a ele, outras limitando-se a ouvi-lo alto, sempre
alto, como se quisesse calar outras vozes que teimavam em assaltá-la,
assustando-a. Cantava para espantar os medos. Sempre assim fora, seguindo os
conselhos de sua avó: “Quem canta não espanta só os seus males. Espanta os
fantasmas, os medos!”
E
ela tinha tanto medo, tanto!! Às vezes dava por si enroscada aos pés da cama do
filho, olhando-o, embalando-se em melodias infantis, não para ele, mas para si
mesma, receando o momento em que a magia se quebraria para sempre. Reaprendera a
rezar quando Artur nascera. “Senhor que eu viva o tempo suficiente para ver os
filhos do meu filho” era a oração que lhe saia quando o olhava assim, plácido,
adormecido, indefeso e feliz por saber que ela estava ali.
Mas
até quando? Até quando?
Um
dia Lena tinha confessado, no meio das lágrimas pós divórcio, que tinha medo
duma série de coisas, entre elas de morrer e as filhas encontrarem-na sem vida,
desesperadas no seu abandono precoce. Maria rira de todos os receios: de que as
garotas gostassem mais da mulher do pai do que dela, que deixassem de a
respeitar, que tivessem pena da mãe.... mas daquela imagem não fora capaz de
rir nem comentar! Limitara-se a recolhê-la dentro de si num silêncio que a
amiga não notou mas que lhe abriu um vazio, um frio no peito!! “Que eu viva
Senhor, por ele, apenas por ele. Deixa-me vê-lo fazer-se homem. Depois... bem
depois é a Tua vontade que tem que ser feita!”
Há
muito que sabia que a sua, não seria uma vida longa. Soubera-o nos primeiros
meses de gravidez.
“É
um risco enorme, minha senhora! Ainda vai a tempo. Nestas circunstâncias não há
médico nenhum que lhe recuse a interrupção da gravidez” - afirmara o médico
afagando-lhe a mão.
Sentira
como se tivesse tocado alguma coisa uma viscosa, infecta e retirou-a
bruscamente. Sabia que o médico não falara por mal. Pelo contrário: dissera-o
com um certo peso e a amargura na voz, talvez estudada e não sentida. Mas nem
essa piedade a tocara. Odiou-o, como se fosse ele o responsável por essa massa
informe que lhe invadia o cérebro inexoravelmente e que em qualquer altura a
poderia matar. A ela talvez, mas ao seu filho não!! Aquela coisa que a minava,
que lhe comia os dias de vida a que tinha direito, não contava com a sua força
de vontade, o seu desejo de ser mãe, de ver esse pequeno ser, que seria um
duplo presente de Deus. Ela havia de sobreviver, de criar o Artur dos seus
sonhos, o homem bom que, a seu jeito, mudaria o mundo, mesmo que fosse apenas o
restrito mundo que era o seu.
E
vencera!
Não
estava ele ali belo e sereno a provar que há poderes mais fortes do que o mal,
a doença, o ódio ou a repulsa? Fora o amor que a mantivera viva. O amor a esse
filho que era dela, só dela.
Do
pai de Artur, não lhe restavam recordações. Apenas cheiros e sensações que a
agoniavam, mais do que todos os enjoos matinais. A lembrança era suja,
repelente, mas o resultado era tão puro, que havia vezes que quase lhe perdoava
a humilhação, a dor, a raiva, o ódio. Tal como na história, este seu Artur era
também, filho do engano, do estupro, da vergonha. Mas tal como a lenda,
revelara-se puro, inocente, sua alegria, seu orgulho, sua razão de viver. Mas
até quando? Até quando? “Com té Partiró!” não haveria ninguém para a acompanhar
nessa viagem, tal como até ter o seu filho, não houvera ninguém para partilhar
esta outra, que se dizia ser apenas passagem para uma melhor.
Ah
avó, avó! Como tinhas razão nessas máximas que muitos achavam chavões, lapalissadas:
“Nascemos sós e morremos sós. É a lei da vida”. Mas avó, quando se nasce têm-se
dois braços abertos à espera. Quando se morre o vazio é o único que nos
acompanha! O vazio e o medo!
Maria
lamentava não ter a fé de sua sábia avó, tão serena, tão confiante!
Voltara
a frequentar a igreja às escondidas. Não se atrevia a que comentassem essa sua
súbita necessidade de conforto, de segurança, que apenas um Ser Superior lhe
podia dar. Porque tudo se resumia a isso, não era? Ao medo da morte. Fora por
isso que o Homem inventara um Deus. Ou não?
Levantou-se
de mansinho com um cansaço que não vinha do corpo mas da alma, e desligou Bocelli,
cansado decerto de cantar vez e outra a mesma melodia. Quase lhe pareceu ouvir
um suspiro contido da vizinha de baixo. Sorriu! Tinha que se deixar destas
aventuras. Afinal a pobre senhora, uma velhinha amorosa sempre pronta a ajudar,
não tinha culpa dos seus medos, da sua solidão, da sua morte anunciada. Que
horas eram, afinal? Quase meia-noite! Que desrespeito! Amanhã levar-lhe-ia uma
dúzia de gerberas. Sabia que a vizinha adorava as cores fortes das flores. Amanhã!
Se o amanhã ainda chegasse.
Espreitou
o quarto do seu filho, onde a luz de presença lançava sombras que aquietavam os
terrores nocturnos que de tempos a tempos surgiam e o levavam a entrar dum
salto na sua cama, enroscando-se no seu corpo e escondendo a carita no seu
pescoço. “Shiu, já passou! Foi apenas um sonho mau! Já passou” e afagava-lhe a
cabeça ouvindo-lhe a respiração acalmar-se lentamente, até o sono o vencer de
novo, apaziguador e sem sobressaltos.
Rodeou
o seu próprio corpo que tremia, engoliu as lágrimas e tentou tranquilizar-se “Vai
passar, vai passar. Um dia tudo não será senão um sonho mau. Vai passar!” Mas o
sono chegou tardio e repleto de sonhos. A si mesma não conseguia embalar-se.
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