terça-feira, 25 de outubro de 2011

SÃO OS LOUCOS DE LISBOA






Passando os olhos pelas notícias dos jornais de hoje, evitando a inevitável crise para a qual já não há pachorra nem, pelos vistos solução, deparei-me com um relato que me arrepiou.
Uma chinesa violada, agredida, manietada, esteve horas numa estrada, onde vários carros passaram sem lhe prestarem auxilio. Ao que consta também da notícia, o mesmo tinha acontecido uma semana antes, a uma criança de dois anos, que foi atropelada duas vezes, como um gato ou um cão, um bicho, sem que ninguém parasse para se abeirar e auxiliar.
Diz ainda o artigo que esta situação de profundo individualismo, está a preocupar as autoridades chinesas.

Lembrei –me da primeira vez que vi um sem abrigo. Foi há cerca de trinta anos em Paris. Não consigo esquecer o horror, a piedade, por aquele ser humano igual a todos os que passavam ao lado ( literalmente contornando-o ) e eu ali olhando sem saber o que fazer. Porque eu queria fazer qualquer coisa, chamar alguém, um polícia uma ambulância… alguém. A minha amiga puxou-me por um braço” C’est un clochard!” e arrastou-me. Rotulado que estava aquele ser atirado à rua já não era humano: era uma coisa , um dejecto, uma sombra. Nem sequer fazia mossa nas consciências. Tão pouco era motivo de qualquer preocupação ou olhar. Era invisível.
Lembro-me perfeitamente que nessa altura pedi a Deus, ao destino, ao futuro, que nunca uma situação daquelas fosse possível no meu país.
Poucos anos mais tarde , já na faculdade, lembro-me duma figura típica que andava ali pelos lados da Duque de Saldanha, sujo , desgrenhado e envolto apenas num cobertor. Era louco, dizia-se, talvez com razão. Nunca o vi estender a mão ou murmurar fosse o que fosse. Mas naqueles anos ainda havia quem lhe desse uma palavra, tomasse a iniciativa duma moeda, de chamar uma ambulância. Ainda éramos humanos.
Mas algures no tempo deixámos de o ser.
Não foi a crise, esta desgraçada que nos ronda há séculos , que nos ferra nos calcanhares de tempos a tempos. Ou melhor, foi. Foi a crise de nos acharmos mais humanos que outros. De nos termos deixado habituar à triste imagem dum corpo envolto em trapos, dormindo em cima de papelão, arrastando os seus poucos pertences em carros enferrujados de supermercado, fugindo á chuva e ao frio num vão de prédio até que alguém incomodado com o cheiro, a visão, o incómodo, o enxote.
Se calhar em vez de estarmos tão preocupados com a crise que nos deixa mais pobres de dinheiro, devêssemos preocupar-nos um pouco mais com a crise dos valores, da solidariedade em que vivemos, que nos deixa cada dia mais pobres de humanismo.

Quanto tempo faltará para termos crianças atropeladas nas bermas das estradas e olharmos para o outro lado fingindo não ver, entretidos que estaremos com as notícias da rádio que hão-de falar,(estou certa!) da crise?

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