segunda-feira, 13 de junho de 2011

A TRADIÇÃO É AINDA O QUE ERA!!

Aqui numa nesga de terra que todos esqueceram, olhando a aldeia empoleirada numa raia que não divide, não separa, aqui sinto-me em casa.
Hoje é santo António na minha aldeia. Hoje Nave de Haver volta a recordar outros tempos.
Os toiros já não são " roubados" mas sim alugados a ganadeiros de perto e de longe. Mas a aficion, a vontade de fazer reviver os mesmos tempos, essa mantem -se no mesmo grito : " Já lá vêm!!"
Tal como ontem;

"...Ao fundo da aldeia, para lá das hortas do linteiro, ficavam os Campanários, pequeno pedaço de floresta ibérica, pertença dos irmãos do lado e pasto de meia dúzia de toiros bravos.


A guerra civil significa exactamente o que afirma: as baixas são homens e mulheres que nada têm a ver com políticas, ideologias, conflitos e que têm a pouca sorte de serem habitantes duma terra que outros põem a ferro e fogo. Mas esta guerra, talvez por ser fratricida, tenta poupar até ao limite as infra-estruturas , os monumentos , as coisas. Só no limite tudo é arrasado em política de terra queimada e semeada de sal.

Depois dos Campanários, resistindo aos ventos e à demência da guerra, ficava Águila uma pequena ganadaria que ia sobrevivendo graças à afficion das aldeias e vilas em redor.

As touradas, como qualquer outra tradição de folguedo, resistem nas situações mais adversas. É o espírito humano que se recusa a vergar e se manifesta nas pequenas extravagâncias com as quais tenta fintar o medo numa ilusão de normalidade.

Os não aficionados olham as touradas como um espectáculo bárbaro, reminescência dos antigos circos romanos. Não podiam estar mais errados! Claro que é um espectáculo de sangue! Mas também o são os combates de boxe e qualquer corrida de cavalos implica um enorme esforço por parte do animal.

Em arena não se defrontam a inteligência contra a força bruta, como argumentam alguns. Essa é uma perspectiva injusta quer para o toureiro quer para o touro uma vez que negam a um a valentia e a outro a inteligência.

Os toiros de lide existem apenas e só para serem toureados. São uma raça de animal que o homem apurou como o fez com inúmeras raças de cães, para um fim específico: terem galhardia, ferocidade, inteligência, força e beleza para serem defrontados por um homem em clara inferioridade física, munido dum pedaço de pano e de bandarilhas que mais não fazem que aumentar a ferocidade do animal. Não servem como gado de carne, pois que são duros como cornos e muito menos como gado leiteiro. São atletas de alta competição, todo eles músculo. Poucos sabem que, muito embora sangrem quando bandarilhados, a zona do cachaço não possui terminais nervosos, pelo que o bom [do] toureiro é aquele que coloca as bandarilhas no local exacto a não provocar dor.

Mas nada disto importava aos rapazes que na noite de 12 para 13 de Junho dormiram ao relento nas hortas. Durante todo o dia tinham transportado os carros de bois carregados de lenha para as eiras onde improvisaram uma arena . As ruas dentro do possível, tinham-nas “ fechado” de modo a fazerem uma grande manga desde a periferia da aldeia até ao local onde iriam provar a sua valentia defronte dos bichos que se preparavam para pedir de empréstimo. Estavam cansados, mas a excitação impedia-os de encontrar o sono e foram poucos os que conseguiram dormir alguma coisa ali, debaixo do imenso céu estrelado .

Cada um levara a alimária que possuía. A grande maioria retirara à corte da família o burrito que habitualmente ajudava nas lides da terra. Outros mais abonados apresentavam-se de machos, híbridos e teimosos, meio asno meio cavalo, mais robustos mas bem mais difíceis de controlar. Só os filhos das grandes famílias exibiam cavalos, quase todos andaluzes, belos de crinas longas negros, lustrosos, nervosos de narinas aspirando o ar como se conseguissem sentir o cheiro dos toiros do outro lado dos campos.

Mas ali, debaixo das estrelas e envoltos em mantas, sentiam-se todos iguais pois que o mesmo objectivo, a mesma excitação os irmanava.

Não era a primeira vez que se aventuravam daquela forma, mas aquela era uma aventura oficializada pela festa e pelos seus organizadores e isso dava um carácter oficial à coisa! Havia até quem dissesse que o próprio pároco tinha dado o seu amén à iniciativa, mas isso era demais. Afinal sempre se tratava dum roubo! Não seria bem bem um roubo mas um empréstimo com usufruto e isso decerto ia contra algum preceito da Igreja logo nem o padre Francisco poderia abençoar.

Mal suspeitavam eles que a essa mesma hora também não se pregava olho de excitação na casa paroquial. Como padre, Francisco não pudera participar na euforia da preparação do grande evento com que a aldeia pretendia homenagear Santo António. Mas através do sobrinho contribuíra com os seis carros de bois carregados de lenha para o redondel. Agora rebolava-se na cama pedindo ao santo que protegesse os rapazes que em seu nome iam cometer um pequeno crime do qual os absolvia antecipadamente.

Assim que a primeira claridade surgiu, puseram-se os rapazes a pé. Partilharam o pão e a carne frita que haviam trazido e a borracha do vinho acre passou de mão em mão. Os risos e o barulho da noite anterior foram substituídos pelos sons abafados que costumavam usar em noites de contrabando. Até os animais pareciam entender aquela necessidade prudente de silêncio.

Em fila indiana dirigiram-se para os pastos espanhóis onde os toiros aguardavam que os tratadores lhes viessem reforçar o desjejum com grandes baldes de farinha que colocavam em pias estratégicas. Era nessa altura que agiriam. Mais interessados em satisfazer o apetite do que em prestar atenção ao que se passava em seu redor, os toiros estariam vulneráveis a serem cercados e guiados. O momento teria que ser quase milimetricamente correcto. Deveriam aguardar que os tratadores se afastassem e que os animais por sua vez se aproximassem das tinas. Havia tempo! Tratadores e tratados respeitavam as distâncias e tinham os seus próprios timings. Mas um descuido podia deitar tudo a perder. Não eram os toiros que os preocupavam mas sim os homens que, caso dessem conta do que se preparava, não hesitariam a atirar.

- Os gajos estão todos armados até aos dentinhos, carais! E olhai que não têm cartuchos de sal. Aquilo ali é chumbo grosso que atira logo um home prós injinhos em menos dum fósforo – tinham comentado uns e outros na véspera.

Por isso mesmo mantiveram as montadas controladas e camufladas na vegetação até não haver dúvidas de que estavam sós.

Calmamente e de acordo com o planeado ( “ eu mais o Vasco à frente . tu.tu , tu e tu a fechar e os outros ao redor”) dirigiram-se à tina mais próxima onde seis lustrosos e grandes animais comiam placidamente.

O instinto é a defesa mais secreta e eficaz de qualquer ser, humano ou animal! O primeiro suspendeu a refeição, ergueu a cabeça nobre e aspirou o ar. Foi o suficiente para dar com eles.

Carregou contra o cavalo de …. mas o animal lançando mão das suas reminiscências andaluzas inscritas num código genético qualquer, aguentou a carga e redopiando sobre si mesmo colocou-o entre as restantes montadas que já se tinham posto em posição .

Os demais, quem sabe ainda atordoados pelo súbito aparecimento ou porque aquele fosse o chefe da manada, não tardaram a segui-lo no cercado móvel feito pelos cavalos.

Em poucos minutos estavam reunidos seis touros que pareciam quase dóceis assim guiados pelos campos. Os rapazes conheciam–lhes as manhas! Sabiam que não tardavam a olhar em redor e a tentarem sair das baias improvisadas. Era preciso apressarem-se a chegar ao final dos Campanários. Depois podiam pô-los a correr entre si, num passo que, embora representasse maior perigo para que um ou outro fugisse, era mais seguro para o êxito da empreitada.

A trote rápido tentando até ao limite do possível manter o silêncio, o grupo chegou à confluência entre os terrenos dos Campanários e o Linteiro. Ali era terra de ninguém. Outros lhes chamariam fronteira, raia. Para eles naquele momento era a linha que marcava o sucesso da aventura. Exultantes, ufanos, meteram os bichos a galope incentivando-os com gritos. Atordoados os touros tentavam encontrar uma escapatória lateral mas o ritmo a que os obrigavam não lho permitia. Nem mesmo os burricos que seguiam mais atrás os poupavam, correndo a toda a velocidade que as suas curtas patas lhes permitiam, de ventas no ar como se fossem transformar-se dum momento para o outro em corcéis árabes.

Os primeiros garotos que lhes saíram ao caminho saudaram-nos e deram o alerta a toda a aldeia:

- Já lá vêm! Já lá vêm!"





4 comentários:

  1. Gostei da descrição e exposição dos argumentos de uma das partes. Agora gostaria de ouvir o touro!

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  2. os toiros, na raia, e em muitos outros sítios, não são entretenimento, mas sim rituais.... Parece difícil de entender e de explicar a excitação que na véspera das corridas possuía até os garotos, a ponto de não conseguirem dormir em casa. gostei do ritmo da narrativa e da paixão que exala das palavras. obrigado
    [do Linteiro aos Campanários é uma canseira. escapou-lhe um pouco a topografia.]

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    1. Caríssimo exoutro:
      De facto escapou, mea culpa! Só me apercebi disso já o livro estava impresso o que me valeu um valente puxão de orelhas do senhor meu pai! Mas... se é da zona 8 mania que têm de não colocar os verdadeiros nomes, bolas!!) sabe bem que muitas vezes até mesmo nós, miúdos na altura , conseguíamos percorrer distâncias ainda maiores.
      Grata pela correcção e se é de lá , por favor brinde comigo a essa Princesa da Raia que trago (zemos) no coração!!!

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    2. sim, sou de lá. perdi o lançamento do seu livro, o que lamento profundamente, mas vou adquiri-lo. o "exoutro" sai automaticamente por causa de blogs anteriores. escrevendo com pseudo, a escrita só vale por si, que é o que se pretende. brindo a ndh e a seus filhos (ou netos) diletos, como a Manuela.

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